sábado, 6 de junho de 2009

O bicho

Hoje me deparei com um bicho.
Era de metal. Inerte, porém articulado.
Era um dos bichos de Lygia Clark. E estava num pedestal.
Fiquei feliz ao vê-lo, depois de muito sabê-lo.
Eu o esperava ver num pedestal também, então não foi uma surpresa.
No entando para a artista acho que seria. Algo idealizado para ir além do objeto de exposição, teve o mesmo fim fatídico de qualquer escultura: o spotlight.
Pro artista arte é coisa muito séria.
Pro mundo arte é mais um rótulo de coisa.
Transbordar a tela e inundar a vida: surpreender o olhar despreparado para o que ele nem sabe que pode ver: esse é o objetivo do artista - sugar o sujeito que fita a obra para uma dimensão onírica, onde 2 corpos podem sim ocupar o mesmíssimo lugar no espaço.
É só ali numa escultura, numa pintura, ..., que uma expressão pode ser tão delicadamente transmitida. Não há palavra dura que transmita a delicadeza mole e sutil do sentimento.
Cá estou - duro que sou na minha casca - transcorrendo com palavras coisas que senti.
E não parto de nenhuma presunção de que conseguirei transmitir o que vi, o que senti, o que pensei. É só que a arte me afeta e daí aquilo que inunda o artista me inunda também - e como também sou artista também tenho que transbordar.
E não falo com presunção que sou artista, falo com convicção.
Nasci gauche.
Tentei me conter aos limites das canvas, mas só consegui transbordar por toda a minha vida.
Talvez o bicho de Lygia Clark estivesse me observando e pensando o mesmo de mim: desafortunada criatura feita para transbordar e contida nessa casca dura com ares de quem respira spotlight.
Devidamente reconhecido, farejado e decifrado virei e fui-me embora.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Por que me sinto mais vivo no frio?

Eis uma pergunta que me acompanha desde tempos remotos. Lembro-me do Rio Grande do Sul e do frio acompanhado de um grande tapete de lã fofa branca, uma lareira, pijamas de flanela e pantufas também de lã. Essa é provavelmente a minha memória mais reconfortante.
Sempre gostei da sensação de ser reconfortado. Gostava de entrar em caixas, armários, me esconder no vão entre 2 sofás e lá permanecer.
Analogamente visito todos esses lugares internos dentro de mim. Gosto de abrir gavetas, à lá Salvador Dali, e procurar por detalhes, traquitanas e coisinhas mil. Às vezes me escondo nessas gavetas e é puro prazer - seguro, protegido, isolado, calmo e quente. Sim, quente. É que só no frio a gente procura por um lugarzinho quente e eles são os meus preferidos. Como é bom buscar um aconchego. Num cachecol. Num casaco de moletom macio.Um chá bem quente de erva-doce. Ou cassis.
E nessa combinação de frio + coisas quentes eu encontro o meu lugar numa gavetinha. Tudo ganha tamanha perspectiva e eu me sinto tão real. Já o calor me deixa confuso, longe de mim mesmo, enevoado, eu mal me reconheço. E no frio eu caibo no meu corpo e é tão quentinho e macio aqui dentro.
Minha mente fica aguçada e pronta para a vida. Fazendo uso de um conceito de Clarice, o frio é Sveglia. O calor não. Meus pensamentos no frio também são. Como um relógio suíço preciso e que sabe funcionar e não se sente errante na sua existência de tics e tacs.
E o meu tic-tac interno me diz que é hora de me interiorizar. Que já passou da hora. A excessão é apenas para me perder num abraço morno. Abraço esse abençoado pelo frio que preenche a distância eterna entre 2 corpos. O frio justifica a minha mais constante frieza. Nele me reconheço e lembro que doçura e conforto são para poucos.
E Saturno com certeza é gelado. Velhinho eremita que vaga pelas regiões geladas. E do calor da centelha que cria a vida é uma espiral para baixo: a vida termina no corpo gelado da morte. E é a morte que nos une, ou o medo dela, e nos permite qualquer prazer e qualquer abraço.